Carmen Euocationis Macrobii

Da fórmula pela qual se costumava evocar os deuses tutelares e devotar cidades ou exércitos.

Excessere omnes adytis arisque relictis
Di quibus imperium hoc steterat.

“Todos eles se retiraram de seus santuários; abandonaram seus altares, os deuses que até hoje mantiveram este império”.

Estas expressões de Vergilius são tiradas de um costume muito antigo dos romanos e dos seus mistérios sagrados mais secretos. Com efeito, é certo que cada cidade tem um deus sob cuja tutela é colocada, e que um misterioso costume dos romanos, há muito desconhecido por muitos, quando sitiavam uma cidade inimiga e que pensavam estar prestes a tomá-la, era evocar os deuses tutelares por meio de uma determinada fórmula. Eles não acreditavam que sem isso a cidade pudesse ser tomada, ou pelo menos teriam considerado um sacrilégio levar seus deuses cativos. É por essa razão que os romanos mantiveram oculto o nome do deus padroeiro de Roma, e até mesmo o nome latino da sua cidade. No entanto, tal nome desse deus é encontrado em algumas obras antigas, que, no entanto, não concordam entre si: as diversas opiniões sobre este assunto são conhecidas pelos investigadores da antiguidade. Alguns acreditavam que esse deus era Iuppiter, outros a Luna, outros a deusa Angerona, que, levando o dedo à boca, indica silêncio. Por fim, outros, cuja opinião me parece mais confiável, disseram que se tratava do Opsconsiuia. Quanto ao nome latino de Roma, permaneceu desconhecido, mesmo para os mais eruditos, temendo os romanos que, se o seu nome tutelar se tornasse conhecido, experimentariam dos seus inimigos uma evocação semelhante àquela que se sabe que eles usaram para as cidades destes últimos. Mas tomemos cuidado para não cair no erro que desencaminhou outros, persuadindo-nos de que só havia uma única e mesma fórmula tanto para evocar os deuses de uma cidade como para devotá-la: porque no Livro V do “Tratado das Coisas Ocultas”, de Sammonieus Serenus, encontro estas duas fórmulas, que ele admite ter retirado de uma obra muito antiga de um certo Fúrias. Aqui está a fórmula pela qual evocamos os deuses de uma cidade que estamos sitiando:

SI DEUS SI DEA EST CVI POPVLVS CIVITASQVE CARTHAGINIENSIS EST IN TVTELA, TEQVE MAXIME, ILLE QVI VRBIS HVIUS POPVLIQUE TVTELAM RECEPISTI, PRECOR VENERORQVE VENIAMQVE A VOBIS PETO VT VOS POPVLVM CIVITATEMQVE CARTHAGINIENSEM DESERATIS, LOCA TEMPLA SACRA VRBEMQUE EORUM RELINQVATIS ABSQUE HIS ABEATIS, EIQVE POPVLO CIVITATI METVM FORMIDINEM OBLIVIONEM INICIATIS, PRODITIQVE ROMAM AD ME MEOSQVE VENIATIS, NOSTRAQVE VOBIS LOCA TEMPLA SACRA VRBS ACCEPTIOR PROBATIORQVE SIT, MIHIQVE POPVLOQVE ROMANO MILITIBVSQUE MEIS PRAEPOSITI SITIS VT SCIAMVS INTELLIGAMVSQUE. SI ITA FECERITIS, VOVEO VOBIS TEMPLA LVDOSQUE FACTVRVM

“Quer sejas deus, quer sejas deusa sob cuja tutela estão a cidade e o povo de Cartago, eu te rogo, eu te conjuro e te peço graça, ó grande deidade que tomou esta cidade e este povo sob sua tutela, para abandonares o povo e a cidade de Cartago, abandonares todas as suas casas, templos e lugares sagrados, e distanciar-se deles; inspira a este povo e esta cidade medo, terror e esquecimento, e depois de tê-los abandonado, que venhas a Roma para viver comigo e com os meus. Que nossas casas, nossos templos, nossos objetos sagrados e nossa cidade sejam mais agradáveis e mais adequadas para ti; para que saibamos e entendamos que a partir de agora és meu protetor, e do povo romano e dos meus soldados. Se isso fizeres, prometo fundar templos e instituir jogos em tua homenagem”.

Ao pronunciar essas palavras, vítimas devem ser imoladas, e a inspeção das suas entranhas deve comprovar o cumprimento destas evocações. Eis agora como dedicamos cidades e exércitos, depois de termos mencionado anteriormente os deuses; mas apenas ditadores e imperadores podem usar esta fórmula de devoção.

DIS PATER VEIOVIS MANES, SIVE QVO ALIO NOMINE FAS EST NOMINARE, VT OMNES ILLAM VRBEM CARTHAGINEM EXERCITVMQUE QUEM EGO ME SENTIO DICERE FVGA FORMIDINE TERRORE CONPLEATIS, QVIQVE ADVERSVM LEGIONES EXERCITVMQUE NOSTRVM ARMA TELAQVE FERENT, VTI VOS EVM EXERCITVM EOS HOSTES EOSQVE HOMINES VRBES AGROSQVE EORVM ET QVI IN HIS LOCIS REGIONIBVSQUE AGRIS VRBIBVSVE HABITANT ABDVCATIS LUMINE SVPERO PRIVETIS EXERCITVMQUE HOSTIVM VRBES AGROSQVE EORVM QVOS ME, SENTIO DICERE, VTI VOS EAS VRBES AGROSQVE CAPITA AETATESQUE EORVM DEVOTAS CONSECRATASQVE HABEATIS OLLIS LEGIBVS QVIBVS QVANDOQVE SVNT MAXIME HOSTES DEVOTI. EOSQVE EGO VICARIOS PRO ME FIDE MAGISTRATVQVE MEO PRO POPULO ROMANO EXERCITIBVS LEGIONIBVSQVE NOSTRIS DO DEVOVEO, UT ME MEAMQVE FIDEM IMPERIVMQVE LEGIONES EXERCITVMQUE NOSTRVM QVI IN HIS REBVS GERVNDIS SVNT BENE SALVOS SIRITIS ESSE. SI HAEC ITA FAXITIS VT EGO SCIAM SENTIAM INTELLEGAMQVE, TVNC QVISQVIS HOC VOTVM FAXIT VBI FAXIT RECTE FACTVM ESTO OVIBVS ATRIS TRIBVS. TELLVS MATER TEQVE IVPPITER OBTESTOR.

Dis Pater, Veiouis, Manes, ou qualquer nome que seja permitido vos chamar, imploro a todos que encham esta cidade de Cartago e este exército do qual quero falar de medo, de terror, de pavor. Que estes homens, estes inimigos, este exército que empunham armas e lançam dardos contra as nossas legiões e contra o nosso exército, as suas cidades, os seus campos, e aqueles que habitam nas suas casas, nas suas cidades e nos seus campos, sejam derrotados por vós e privados da luz do céu; que o exército de inimigos, que suas cidades, que seus campos dos quais quero falar, que os chefes de indivíduos de todas as idades, sejam devotados e consagrados a vós, de acordo com as leis pelas quais os maiores inimigos são consagrados a vós. Em virtude da minha magistratura, devoto-os em nosso lugar, substituo-os por mim, pelo povo romano, pelas nossas legiões e pelos nossos exércitos, para que preserveis, no meio do empreendimento que temos de conduzir, a minha pessoa, minha dignidade, meu poder, nossas legiões e nosso exército. Se eu sei, se sinto, se entendo que isso fizestes dessa maneira, então quem fez o voto de sacrificar três ovelhas negras a vós, onde quer que o tenha feito, estará validamente comprometido. Terra nossa mãe, e a Iuppiter, eu te asseguro!”

Ao pronunciar a palavra Terra, tocamos a terra com a mão. Ao dizer a palavra Iuppiter, levantamos as mãos para o céu; ao fazer o voto, colocamos as mãos no peito. Descobri na antiguidade que as cidades dos Tonianos, dos Fregélios, dos Gabianos, dos Veienses, dos Fidenates, foram consagradas na Itália; e fora desse país, Corinto, sem contar várias cidades e exércitos inimigos, gauleses, hispanos, africanos, mouros e outras nações de que falam os antigos anais. Foi, portanto, essa evocação dos deuses e da sua retirada que fez Vergilius dizer:

Excessere omnes adytis arisque relictis Di.

“Todos os deuses retiraram-se dos seus santuários, abandonaram os seus altares”.

É para assinalar a sua qualidade como protetores que acrescenta:

quibus imperium hoc steterat

“Os deuses que até hoje mantiveram este império”.

E por último, para mostrar, além da evocação dos deuses, o efeito da cerimônia de devoção de uma cidade, pois é Júpiter, como já dissemos, quem ali é principalmente invocado, diz o poeta:

Ferus omnia Iuppiter Argos
Transtulit.

“O cruel Júpiter transportou tudo para Argos”.

Ora, parece-te provado que dificilmente podemos conceber a profundidade do conhecimento de Vergilius tanto na lei divina como na lei profana?

Macrobius Ambrosius Theodosius (“Saturnalia”, L. III, C. IX)

Tradução: Bellou̯esus Īsarnos