O Outono do Druidismo

Essa pergunta pode ser respondida de duas formas. A primeira, mais simples – não necessariamente incorreta -, se apoia em um fato cronologicamente localizável: houve um ponto da história em que os druidas foram substituídos por padres. Portanto, os últimos druidas irlandeses teriam sido aqueles que vieram antes dos primeiros padres irlandeses. Vamos começar com essa explicação direta.

Os druidas foram um grupo de líderes religiosos das sociedades célticas da Europa Ocidental, incluindo a Irlanda, no período pré-cristão. Desempenhavam numerosas funções em suas sociedades: sacerdotes, autoridades jurídicas, guardiões das tradições, magos e pensadores. Eram altamente respeitados porque lhes atribuíam conhecimento profundo da natureza, do mundo espiritual e de ciências, como a astronomia e as matemáticas.

No séc. V, com a expansão do Cristianismo na Irlanda, a influência dos druidas começou a declinar. O processo de cristianização trouxe a conversão de numerosos sítios pagãos para a nova fé, a reinterpretação de tradições e relatos antigos para uma estrutura cristã, o desvanecimento das religiões e práticas antigas, inclusive do Druidismo. As últimas gerações de druidas antes que as suas práticas e crenças fossem totalmente absorvidas – ou completamente extintas – pelas práticas cristãs teriam sido então os “últimos druidas da Irlanda”.

Detalhes precisos sobre os druidas são raros, pois muito do que se sabe a respeito deles provém de fontes romanas ou cristãs antigas que podem ser tendenciosas ou incompletas. Os romanos, que nunca conquistaram a Irlanda, escreveram sobre os druidas em outras regiões da Europa geralmente de modo negativo, primeiramente em razão de sua resistência ao domínio romano e depois, ao Cristianismo.

Os monges cristãos, que estavam entre as poucas pessoas letradas na Irlanda da Alta Idade Média, registraram muito da tradição oral dos nativos, porém sob a influência das perspectivas cristãs. A tradição druídica era essencialmente oral; os druidas não nos legaram registros escritos próprios. Por isso, muito do que hoje se sabe foi obtido de evidência arqueológica, de escritos de outros povos (com frequência adversários), dos vestígios de tradições célticas que sobreviveram no folclore e de práticas tardias que podem ter sido influenciadas pelas crenças druídicas.

Nos tempos modernos, tem ocorrido um renascimento do interesse pelos druidas como parte de um movimento neopagão que busca reconstruir ou reimaginar, ressignificar práticas e crenças antigas. Essa interpretação moderna do Druidismo encontra inspiração em textos históricos, achados arqueológicos e tradições folclóricas. Não é uma continuação direta das práticas antigas. Os “últimos druidas” da Irlanda, portanto, são a ponte para um passado que se acha parcialmente borrado pelo tempo, transformado pela expansão cristã e sujeito à reinterpretação pelas gerações que vieram depois à procura de uma conexão com a sua herança genética ou espiritual.

A segunda explicação é mais complexa. Engloba número maior de fatores e possui mais camadas. E é também mais interessante. Pede considerações sobre fontes antigas e alto-medievais, a comparação entre sociedades célticas e uma boa dose de dedução.

Os últimos séculos da existência dos druidas como grupo diferenciado testemunharam mudanças profundas no seu papel social, mudanças que (quase) certamente implicaram em câmbio na qualidade/quantidade do conhecimento transmitido. É possível discernir estágios nesse processo, que são visíveis nas fontes sobre as sociedades célticas.

Ponto um: está bastante claro que o Império Romano vetou as práticas religiosas dos druidas, fossem quais fossem, no séc. I EC, época em que o governo monárquico ainda estava se consolidando. Diferentes autores dão crédito a imperadores diferentes – Suetônio cita Augusto, Plínio cita Tibério, Tácito cita Cláudio, por exemplo – mas o primeiro século é o denominador comum. Contudo, cabe questionar com que firmeza esses decretos foram realmente aplicados. É difícil dizer.

Na Irlanda do séc. VI e início do VII, os druidas evidentemente ainda tinham uma posição social altamente respeitada, detentores de poderes jurídicos e considerados capazes de proezas mágicas. Há um documento conhecido como “Primeiro Sínodo de São Patrício” (ou “Sínodo dos Bispos)”, apócrifo, de datação bastante obscura (séc. VII, séc. VI, conforme o estudioso a quem você perguntar; mas todos concordam que é muito posterior ao verdadeiro São Patrício, embora integre os cânones da Igreja da Irlanda). O mundo retratado nesse documento está ainda cheio de druidas e de outros não-cristãos. Ele é claro em afirmar que os cristãos não podem prestar juramento diante de um druida ao modo pagão, e os sacerdotes cristãos não podem receber juramentos/garantias prestados à maneira druídica ou pagã. As vidas dos santos dos séculos V a VI atribuem casualmente poderes mágicos, inclusive na guerra, aos druidas. No século VII, é um detalhe realista que a hagiografia de Santa Brigit descreva o homem que a criou, Dubthach, como chefe tribal e druida.

Os textos jurídicos apontarão a erosão final da posição elevada dos druidas entre o fim do séc. VII e o começo do séc. VIII. No País de Gales, os druidas parecem ter sido abolidos como grupo por volta dessa época. A designação de bardo (galês bardd < britônico *bardos ou prydydd < *pritii̯os) e vidente (galês gweledydd < britônico *u̯eletii̯os) sobreviverá até o séc. XIII; posteriormente, grupos de bardos continuarão a existir, a se reunir e a transmitir as suas tradições, mas desprovidos de status legal. Ainda mais complexa era a situação dos videntes. Na Irlanda, textos jurídicos como “Bretha Crolige” e “Uraicecht Brecc” atribuíram baixíssima posição aos druidas, classificando-os junto aos salteadores e aos altamente desprezados satiristas. Não gozavam de prestígio algum, não valiam mais do que um lavrador. É de se observar que o bardo sofreu erosão social no âmbito goidélico (mas não no britônico), onde sua posição elevada foi ocupada pelo fili (originalmente “vidente”; < irlandês primitivo ᚃᚓᚂᚔᚈᚐᚄ (velitas [ˈweliːθah]) < protocéltico *u̯elīts); situação semelhante, como se acaba de apontar, ocorreu com o drui, que o “Crith Gablach” posicionou entre os doer (< *duu̯iroi, “homens de baixa qualidade”, os profissionais especializados, como ferreiros, juristas, marceneiros, cujo sustento dependia do pagamento por seus serviços).

É no séc. VIII (701-800) que a tradição galesa e a tradição irlandesa tomam caminhos decididamente separados no trato dos druidas. Com o apagamento do druida como classe social, o seu nome sobreviveria em Gales ligado a ideias de vidência ou de profecia, de dons sobrenaturais. Na Irlanda, ao contrário, esse apagamento não ocorreu. Druidas continuaram a existir como pessoas reais, não personagens de relatos antigos cantados por menestréis, porém desprovidos das honras de outros tempos. O druida se tornou o feiticeiro que habita no arrabalde do povoado, aquele que o aldeão procura em busca de uma poção de amor, da cura para a doença da vaca leiteira ou do feitiço para achar um tesouro enterrado. Foi o que lhe sobrou quando o bispo e o abade ocuparam o seu lugar junto ao governante.

Acontece que figuras proféticas e feiticeiros pagos com galinhas ou um porco (comumente o mesmo indivíduo) eram características bastante comuns da sociedade medieval. E estavam cristianizados ou absorvidos pela prática cristã o suficiente para a sua clientela cristã (embora nem sempre para o clero mais rigoroso), juntamente com outros vestígios do velho paganismo. Práticas como um encantamento para encontrar um anel perdido com meia dúzia de “Ave Marias” ou venerar São Brénnan diariamente por uma semana. Foi através de “traduções” como essas que a “bagagem cultural” dos druidas começou a mudar. Adquiriu novo significado ou verniz. Era conhecimento cristão para os clientes dos druidas do período de decadência. Para eles também acabou se tornando conhecimento cristão.

Ponto dois: a mudança no prestígio social certamente afetou quem se tornava druida. Nada sabemos sobre o processo de tornar-se druida, mas geralmente se esperaria que o tipo de pessoa a escolher a si mesma ou a seus filhos para um determinado papel social deseje coisas mais vantajosas. Por que se rebaixar ou rebaixar o seu filho ao nível de um salteador? Se você quisesse a melhor educação e o prestígio para si mesmo e, por extensão, para a sua família, a aposta certa seria entrar em um mosteiro ou integrar uma das ordens religiosas menores. Vamos lembrar o que César escreveu sobre o recrutamento druídico na Gália independente: “Os druidas obtiveram a isenção do serviço militar e não pagam os tributos que aos demais impendem; estão isentos do serviço militar e de todo tipo de taxas. Tentados por tais vantagens, muitos espontaneamente se dedicam aos estudos druídicos, enquanto outros são enviados por seus pais ou outras pessoas próximas” (“Comentários sobre a Guerra da Gália”, VI, 14). Nada parecido se aplicaria na Irlanda do séc. VII. Estava muito distante o tempo em que Mug Ruith podia exigir fortunas ao rei provincial por seus serviços. Sem honras, sem reconhecimento, sem vantagens materiais, que pai destinaria seu filho à carreira de druida? Da aristocracia, penso que nenhum. Talvez o plebeu mais desvalido.

Ponto três: dispomos de exemplos paralelos que demonstram como a necessidade e a praticidade de tipos específicos de conhecimento moldam, ao longo do tempo, o que as pessoas aprendem e usam. É por isso que o Império Romano, em especial na fase mais tardia, abarrotada com uma multidão de decretos promulgados e de imediato ignorados, era tão letrado, inclusive entre a nobreza. Essa característica desapareceu completamente durante a dissolução final trazida pelas guerras que devastaram a Itália no séc. VI, quando a cidade de Roma chegou a ficar deserta, vazia como a cabeça de um Honório ou o bolso de um Constantino XI. A cultura literária da elite romana sobrevivente já não contribuía em nada para afirmar a sua elevada posição sociopolítica; a alfabetização não era requisito indispensável para interagir com uma burocracia defunta. No mundo de hoje, poucas pessoas colocariam em dúvida as vantagens de ser alfabetizado. Historicamente, entretanto, não era o que acontecia. Se ler não era imediatamente útil, então as pessoas não sentiam a necessidade de aprender a ler. À medida que os papéis mais políticos dos druidas (especialistas em questões legais, pedagogos, ministros da “religião pública”) se apagaram, os conhecimentos em torno de tais funções também evaporaram.

Obviamente algum conhecimento druídico ainda seria transmitido; tornaram-se feiticeiros comuns na Irlanda e suas habilidades proféticas eram evidentemente respeitadas em Gales, mesmo após a aparente abolição dos druidas como grupo social possuidor de status elevado. As pessoas acreditavam que havia um “além” ao alcance dos druidas, por assim dizer; aceitavam a ideia de que os druidas tinham algum tipo de conhecimento especial. Mas os paralelos históricos da evaporação do conhecimento nos indicam que a sua base não teria sido tão profunda como no passado, e a situação da feitiçaria (baixa magia) endêmica na Europa medieval nos exibe com clareza que muitas pessoas não teriam necessariamente percebido esses “druidas” como “pagãos” ou separados da cultura cristã mais ampla (a propósito, isso remete à discussão sempre presente de uma “bruxaria cristã”).

Reles feitiçaria? Bom, a Idade Média inteira viu decretos, bulas e leis que não tinham outro alvo senão banir essa prática popular, coisas como acender velas e dizer um “Pater Noster” para ajudar a desenterrar um tesouro escondido no campo, o que tem numerosos registros nos arquivos judiciais de muitas cidades europeias, particularmente na Alemanha da Reforma; não se trata de bruxaria, entendida como o fruto da associação com Satã, alvo da famigerada “Santa” Inquisição.

Compreendemos, portanto, que não é possível cravar um ano exato para o ocaso dos druidas na Irlanda (ou em qualquer outra parte das terras um dia célticas), também porque as fontes à mão nem sempre são datáveis. O que podemos claramente perceber é a sua decadência gradual como classe social político-religiosa altamente respeitada e bem relacionada para a posição de feiticeiros da aldeia.

Bellou̯esus Īsarnos

Referências

César, Gaio Júlio. Comentários sobre a Guerra da Gália.
Kelly, Fergus. A Guide to Early Irish Law.
Paor, Liam De. Saint Patrick’s World; the Christian culture of Ireland’s apostolic age.
Paor, Máire De & Paor, Liam De. Early Christian Ireland.